sexta-feira, 12 de março de 2010

EM MEMÓRIA DE JOSÉ MINDLIN

Ainda não vi o filme Preciosa, que concorre ao Oscar, mas li o livro e só não o hiperfestejo porque implico um pouco com textos escritos propositadamente errados – narrado na primeira pessoa, a personagem é analfabeta e é “nóis fumo” e “tô lavando os prato” da primeira à última página, mas entendo que sem esse naturalismo o relato soaria inverossímil e a reação à leitura não teria o mesmo impacto. Preciosa dói. E, quando o livro acaba, a gente mais uma vez se conscientiza de que não precisaria doer.
Educação segue sendo a melhor terapia para a saúde mental de uma pessoa. A personagem do livro engravidou do próprio pai aos 12 anos, é abusada também pela mãe e aos 16 está grávida de novo, do pai de novo. Só o que conhece da vida é isso: abuso e violência. Nunca ouviu uma única palavra doce em sua brutal adolescência. É feia, gorda, pobre, negra e sem estudo. Um personagem como os que existem às pencas no Brasil, ainda que Clareece Precious Jones, a Preciosa, seja americana – o que não torna sua desgraça menor.
Pra cada um de nós foi designado um anjo. Cabe a nós reconhecê-lo e permitir que ele nos ajude. O anjo de muitos brasileiros foi José Mindlin, um devoto dos livros e incentivador da cultura que faleceu domingo passado aos 95 anos. O anjo de Precious foi uma professora sem medo de desafios. O livro não acaba com Precious ganhando o prêmio Nobel de Literatura, mas mostra a porta, a única porta, pela qual todos devem passar caso queiram ser alguém.
O tocante da história é ver uma menina começar a ter acesso a algo absolutamente mágico: a união de duas letras, três letras, quatro letras, e isso se transformar numa palavra, e essa palavra dar sentido ao que ela não sabia até então como identificar. E então perceber os direitos que lhe roubaram na infância e desejar voltar no tempo pra experimentar a vida como ela deveria ter sido. Só que ninguém pode voltar para onde nunca esteve. Ela terá que carregar para sempre o massacre que sofreu por ter dois brutamontes ignorantes como pais e tentar transformar essa chance de crescer, que está recebendo, em um futuro minimamente decente. É possível?
Se através da autovalorização não for possível, então de nenhum outro jeito será.
Imagino o desespero de alguém que deseja retornar ao ponto de partida, recriar suas experiências, vivenciar o que lhe foi sonegado, mas que não pode. Porém, um dia a gente acorda, os livros nos acordam, um anjo nos acorda, e somos avisados: não adianta mais olhar para trás. É ir em frente ou nada.
Tem um monte de gente preciosa por aí que a gente não enxerga, que não recebe de nós um incentivo. O prólogo do livro traz uma frase que diz: Toda folha de grama tem seu anjo que se curva sobre ela e sussurra: “Cresce, cresce”. Tivemos a sorte de nascer em famílias que nos ofereceram uma certa estrutura, que nos possibilitaram estudar e crescer – já nascemos arbustos. Poderíamos retribuir sendo, para as folhas de grama, o anjo que sussurra.
Martha Medeiros, publicado no Zero Hora/RS em 03/03/2010

Nenhum comentário: