quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

A DESPEDIDA

A vida é uma grande despedida, adiável mas sem remédio; fato intrínseco à existência: o início de algo é sempre o começo do fim. Por isso, quanto mais se vive, mais se morre. Deste grilhão, não há fuga eficaz, mas todos correm atrás: viver a mil por hora, cinqüenta anos em cinco. Mas o problema não está em como se morre, e sim no jeito que se vive. O “adeus” só é penoso quando deixa algo para trás.
Nesta crônica, coluna ou qualquercoisameexpresse, o personagem é narrador e tem nome. Em boa parte dos últimos sábados, vocês têm lido e, agora, esse cara precisa ser explícito, sem máscara, sem possibilidades. Resta-lhe o real. O nome dele é Marcel – para vocês Marcel Albuquerque. Vulgo “eu”, para mim mesmo. Escrevo assim, sobre minha vida tão escancaradamente, porque é um assunto que transborda minhas sinapses nervosas, conversas e sonhos. Portanto, sinto a necessidade de compartilhar.
Minha vida, em especial, foi marcada por lágrimas em desencontros. Morei em quatro cidades até parar onde moro hoje, São Gonçalo, aqui no Rio de Janeiro – e você deve ter pensado aí “Mora maaal”…pois é! Acontece que cada vez q’eu mudava de residência havia um aborto do passado. Meus pais, por não serem capazes de lidar com forças contrárias às suas vontades, por administrarem muito mal as finanças domésticas, sempre arruinavam meus círculos sociais. Por isso, me acostumei a viver na iminência de cessar meus relacionamentos; Por conseguinte, acabei desenvolvendo uma característica peculiar e de destaque: não esqueço de quase nada, por dividir os fatos em locais que passei, colégios que estudei e, acima disso, por agregar valor demais a cada uma das minhas ações e pessoas que convivi. Conseqüência irrefutável: me preocupo demais com os resultados – o que me tornou calculista, mas não menos afetuoso. Daí, nenhuma das minhas ex-namoradas deixou de ouvir um “Eu te amo”, porque eu sempre pensei que, sabe-se lá, no dia seguinte eu poderia desamar – ou pior, poderia morrer…afinal, nunca se sabe.
Sobre amores, aprendi uma coisa em particular – resposta q’eu daria no Orkut, se fizesse sentido preencher aqueles campos todos: amor nenhum acaba. Você muda a forma de administrar, você guarda em outro canto do peito – às vezes, escondido. Mas ele fica lá. É como se o coração fosse um papel que ganhasse assinaturas ao longo da vida; Umas, recentes, ainda mancham. Outras, muito fortes, afundam o papel. Como se vê, independente da fôrma, do tamanho e se é escrita por linhas tortas, permanece lá. Trata-se d’uma oposição – um adendo, talvez – a uma alegoria famosíssima de Heráclito. Diz ele que um homem jamais entra no mesmo rio duas vezes, visto que nem o homem nem o rio permanecem iguais, pois existe um constante e ininterrupto processo de mudança. De forma alguma afirmo que estamos prontos e sequer indico que cada indivíduo tem uma essência, pois somos efeitos das interações que nos envolvemos, mas algo é fato: algumas coisas são carregadas conosco e não há nada que possa tirá-las d’a gente.
Há coisas que supomos saber, mas só sabemos de verdade quando experimentamos. Esse ano, não sei se lembram, fui à Paraíba. Viagem da faculdade, fomos de ônibus daqui até lá. Sempre soube da desigualdade no nosso país, sempre percebi a concentração de renda, mas não lembro de algo tão grotesco quanto saber que pessoas moram na rua e existirem tantos latifúndios – a maioria, sem produção. Algumas horas atrás, fiz minha provável última avaliação formal de Matemática na vida. Não que eu seja lá apegado a ela, mas o sentimento de morrer é inquietante.
Muito pior que isso, foi constatar a falta que uma pessoa faz, quando não há mais forma de revê-la. Nessa semana que passou, dia dezoito, completou um ano que meu pai morreu. Coincidência infeliz, aquele que não era meu pai biológico e q’eu chamava, mais do que de “pai de criação”, pai de coração – pois “pai” não é aquele que faz, nem o que cria, mas aquele que identificamos como tal – morreu de infarto. É verdade que já não nos dávamos tão bem quanto quando eu era criança, pois era muito mais fácil. Eu era praticamente um boneco loiro agarrado no pescoço dele. Mas, por um confronto que me entristece, seu conservadorismo na política, na religião e no pensamento social em geral foi criando barreiras na nossa relação. O que nunca implicou eu deixar de admirar o quanto ele se esforçava por mim e o talento que tinha com tudo que não pensava – animais, máquinas e bebês.
Não há mais alguém pra discutir comigo se o começo do século foi em 2000 ou 2001, vir contar uma das histórias de quando era amigo dos Golden Boys, da época de seminarista, de uma ex-namorada ‘macumbeira’. Alguém para fazer alguma piada idosa, q’eu já tinha ouvido mil vezes, mas sempre ria. Ou, então, alguma confidência do Brizola – q’ele foi segurança – ou da Benedita, que freqüentava minha casa quando eu era moleque, pra comprar calcinha com minha mãe. O meu Papai Noel, de cabelos brancos e barba grande morreu. Mas, sem dúvida, não deixou de existir; Estou namorando e dói só de imaginar perdê-la. Contudo, que ela e meus ex-amores compreendam, nada se compara à dor da morte do meu pai, porque, ainda que ele tenha vivido sem mim, eu não sabia o que era a vida sem ele.
Fardo e infortúnio meu, neste caso: sou ateu. Conclusão lógica: não acredito que eu possa falar com meu pai num centro espírita, que deva rezar por sua alma ou que agora ele esteja melhor. Acredito – apesar de não ter certeza – que ele agora só reside naquilo que construiu na vida, em pessoas como eu. Paradoxalmente, não acreditar em Deus me traz uma obrigação: viver todas vidas em uma, compactar a eternidade no calendário.
Minha intenção, com este texto, não é tentar ensinar a vocês o que só é discernível ao viver. Mas eu sei que há coisas que li que mexeram comigo. Se é isso exatamente o que busco aqui, nada mais plausível q’eu dizer, mesmo que usando de uma mensagem clichê: lembrem-se de não deterem controle pleno de suas próprias vidas e que, por isso, vocês precisam construí-la tijolo por tijolo, pois o ‘amanhã’ vem depois do ‘hoje’.
Vislumbro apenas que vocês vivam a mudança, mas saibam valorizar o que lhes é inseparável, por ser parte daquilo que você também chama de “eu”. Nossa casa nunca deixa de ser nossa, mesmo após a mudança. Porque o valor verdadeiro não está na propriedade, mas no lugar do espelho: na auto-imagem. Termino este texto sem fim, porque o sentimento é indizível e porque não me despeço de vocês… Semana que vem, estou de volta. Se possível, um cadin mais presente.
Até!

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