quarta-feira, 7 de agosto de 2013

ENTRE O CÉU E O INFERNO DA SALA DE AULA

Quando comecei a dar aulas, há alguns anos, ainda inexperiente, uma das primeiras coisas que pensei foi: será que vão acreditar em mim? Eu não aparento a idade que tenho e isso poderia me causar problemas. E causou, mas aí eu já era uma veterana em sala de aula. Voltando às minhas primeiras turmas, todas foram extraordinárias, mas, como o primeiro sutiã, jamais esquecerei as duas primeiras, que peguei simultaneamente no segundo semestre de 2009. Uma delas tinha 80% de mulheres, a outra 90% de homens, mas ambas extremamente carinhosas e ansiosas para terminar o curso (estavam no último período e por muitos anos meu desafio foi chamar a atenção deles para as minhas disciplinas em meio ao TCC).

Reprovei um monte de gente, confesso. Mas, cara, eles, meus alunos, sabiam que eu tinha feito tudo o que eu podia para ajudar aqueles que mereciam. E qual era o requisito? A formulazinha mágica de qualquer professor: participação + assiduidade + interesse. Viram que eu não citei “inteligência”? Professor não passa aluno por inteligência; estes passam sozinhos. Ser inteligente e não ter interesse não é suficiente. Ser inteligente e não ter dúvidas não existe. A joia rara que nunca assistiu a uma aula minha e tira nota 9,0 na prova, foi mais por trambique do que por inteligência.

No quesito participação, alguns alunos me emocionaram. Uma, manicure, não tinha intimidade com computadores. E estamos falando da disciplina de Marketing Digital. Ao final do primeiro dia de aula, ela me procurou e me contou que não tinha computador e (já) estava preocupada com disciplina. Sugeri a ela treinar em uma lan house perto de casa ou pedir emprestado o notebook de algum parente. Ela pegou um emprestado da irmã e treinou. Treinou. Treinou. Fez todos os trabalhos, as provas. E passou. Por média. E eu tive a oportunidade de lhe dar meus parabéns. Muitos dos meus alunos assíduos nas redes sociais não chegaram aonde ela chegou.

Outro caso que deixou meu coração apertado foi num dia de prova final numa turma de último período. Tinham uns seis alunos em sala e uma delas, assim que terminou a prova, me pediu para ajudar um rapazinho pequeno e franzino sentado lá na frente. Contou que a história de vida dele era de muita luta, que ele vivia no Recife sozinho, só via a família a cada 15 dias. Não tinha casa; dormia no estoque da loja onde trabalhava. Eu já tinha juntado as peças. Ele não era participativo em sala de aula, mas sempre estava lá, sentado na frente, prestando atenção, muitas vezes sendo o último a sair. Esperei os demais terminarem as provas e fui até ele. Apoiei-me numa cadeira ao lado e comecei a incentivá-lo a raciocinar sobre cada questão, fazendo-o relembrar o que viu em sala – tomando o cuidado de fazê-lo ‘construir’ a resposta por ele mesmo, ‘dar’ a resposta seria fácil demais, pra mim e pra ele. Ele estava sempre lá, em sala de aula, iria se lembrar de tudo. Ele não se lembrou de tudo exatamente, mas o suficiente para passar.  E eu tive a oportunidade de lhe dar meus parabéns.

Em 2013, pela primeira vez, tive oportunidade de dar aulas para uma turma de primeiro período. Uma turma pequena, atenta, e muito divertida. Eles me permitiram dar aulas leves e falar coisas sobre o céu, a terra, a água e o ar – coisas que só uma turma excelente consegue tirar de um professor. Eu os olhava e via o brilho nos olhos daquele povo que começa com todo gás, cheios de sonhos, de energia, e já preocupados com o TCC, tadinhos. Alguns não passaram por média e nos encontramos no dia da prova final. Eu estava mais confiante neles do que eles na prova. Eles precisavam de poucos pontos para passar, mas estavam bem nervosos. Faltava apenas uma aluna chegar para iniciarmos a aplicação da prova, mas soubemos que ela estava doente e não poderia ir. “Sem problemas”, pensei. Iniciei a prova com eles na certeza de que ela viria outro dia quando estivesse melhor para fazer sua prova final somente comigo. Semanas se passaram e nada de contato. Ontem recebi a notícia de que ela faleceu, depois de longas semanas internada. Eu não a conhecia a fundo, mas lembro do que ela me disse no primeiro dia de aula: quero me formar para ter uma vida melhor. Ela teve, tenho certeza, apesar de tudo, apesar do pouco tempo. E eu não tive a oportunidade de lhe dar meus parabéns. Querida Lucimone, onde quer que esteja, parabéns. Pelas decisões honrosas que tomou, pela coragem, pela alegria, pela qualidade dos amigos, do amor pela família, dos sonhos. Eles não acabaram, foram apenas adiados por um plano maior que alguém que te ama demais preparou para você.

*Este texto é uma homenagem à aluna Lucimone Melo, falecida no dia 13 de julho de 2013.

Texto publicado no site Blumenews // www.blumenews.com.br

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